Grupo de Ação Revolucionária Antifascista
Texto da autoria de "Rodmo", ativista colombiano do GARA
Tradução de "Alves", ativista do GARA - Coimbra
A possibilidade de migrar para outras latitudes apresentava-se como uma oportunidade para mudar de vida (em termos de tranquilidade), de rotina e, porque não, das condições económicas. Contudo, desde o início, a experiência revela-se adversa, começando pelo processo migratório (quase coercitivo, onde te expõem a um sem-número de situações, em que te sentes vigiado, apontado e até acusado de ações que não cometeste). Este tipo de experiências não só desvendam as dinâmicas próprias do sistema, mas também te dão uma perceção inicial do que pode estar por vir.
Ora, a chegada ao destino desejado implica um choque forte com outra realidade, que te obriga de imediato a desprenderes-te dos teus hábitos e das tuas ilusões; gerando um processo gradual de desenraizamento, de aculturação, de desadaptação; que, ao mesmo tempo, te exige adaptarte vertiginosamente à nova vida, mas sem te dar as ferramentas necessárias para essa adaptação. O migrante deixa para trás a sua identidade, porque o contexto exige uma nova, uma identidade socialmente funcional; e é aqui que considero que as coisas começam a ficar "pretas".
Inicias uma fase de adaptação que te implica de forma abrupta começar a compreender desde o uso da sua moeda local, da sua língua, do seu transporte, e um sem-número de variáveis aparentemente irrelevantes que surgem da experiência perante o novo. Mas percebes, quase de imediato, que uma coisa é deixar-te levar pela novidade e outra coisa muito diferente é querer viver como um português médio.
A questão da habitação
Quando tentas procurar uma habitação digna, tens o primeiro choque: a impossibilidade de acederes a uma habitação digna, a um espaço pessoal adequado. E é então que te deparas com a realidade de ter de conseguir, já não um apartamento completo, mas um quarto numa casa onde convives com muitas pessoas... pessoas, em certas circunstâncias, com problemas mentais muito evidentes, mas é a opção mais económica que consegues encontrar.
Por conseguinte, partilhar com diferentes personalidades, com diferentes formas de entender a higiene dos espaços partilhados, “disputar” o tempo e o uso da cozinha, das casas de banho, e notar as diferentes perceções de reconhecimento da alteridade já constitui um duro choque psicológico no processo de adaptação.
Ora, pessoas alheias à vivência e desde diferentes comodidades considerá-lo-iam positivo, como uma experiência multicultural e intersubjetiva. Que romântica forma de perceber a pobreza imposta! E porquê pobreza? Porque, se não tenho a possibilidade de aceder a um espaço digno, onde possa ter tranquilidade, porque o pouco dinheiro que ganho representa 60% (ou mais) do custo do aluguer de um quarto pequeno; isso é um sinal claro de pobreza, que não pode ser disfarçado com eufemismos.
Somado ao anterior, desde o início exigem-te um montante elevado de dinheiro para te alugarem (3 meses adiantados), dinheiro que, em muitas ocasiões, não tens e, se tens, deixam-te sem possibilidade de comer bem até encontrares um trabalho. Aqui já te estão a violentar de forma indireta ou talvez direta, porque sabem bem as condições em que chegaste. Sem mencionar que, quando deixas a habitação, não te devolvem a caução.
A questão laboral
Consequentemente, lanças-te à rua em busca de uma oportunidade laboral e encontras-te com uma realidade crua: a possibilidade de conseguir um trabalho de acordo com a tua formação, os teus conhecimentos e aptidões está distante, muito longe... Mas a única forma que tens de sobreviver é aceitar os trabalhos que os locais não aceitam, e é nesse momento que tens de inventar um sem-número de perfis laborais para poderes aceder a trabalhos que, na sua maioria, supõem jornadas extensas e em condições paupérrimas (trabalhos de "lixo" ou de "merda", como diria David Graeber).
Ora, uma vez vinculado a qualquer esfera laboral de "lixo", deparas-te com indivíduos locais da mesma classe que tu, que consideram que és uma ameaça, que chegaste ao país para lhes "roubar" os trabalhos, esquecendo-se de que estão nas mesmas condições de exploração laboral que tu, que o esforço que eles fazem e que tu fazes vai beneficiar sempre os mesmos: o patronato.
Tanto tu como eles pagam impostos a um sistema que te discrimina quando vais solicitar atenção médica, que, tendo contribuído para a saúde, ainda assim te continua a tratar como um sujeito alheio a quem se deve cobrar tudo, “até por estares 5 horas numa sala de emergência para seres atendido”.
E se te queixas, essas mesmas pessoas dizem-te que deves estar agradecido por te darem trabalho, sem importar que seja um trabalho de "lixo", esquecendo-se de que não te estão a oferecer nada de graça, que o teu trabalho tem um custo e que, tal como eles, fazes parte da imensa classe trabalhadora que move o mundo todos os dias, desde muito cedo até altas horas da noite; que os que devem estar agradecidos são aqueles que te exploram, porque fazes as tarefas complexas e contribuis para um sistema de saúde e pensões que, no final, nunca te acolherá por seres estrangeiro e que, ainda assim, beneficiará outras pessoas locais. Este é o teu primeiro encontro com uma classe trabalhadora sem consciência de classe.
E porquê uma classe sem consciência? Porque sabem que são explorados, sabem que as condições de trabalho são indignas, mas preferem calar, lamber as botas de quem os subjugam por medo de ficarem sem trabalho, preferem lutar contra o companheiro e abraçar ideais chauvinistas, porque é mais fácil lançar responsabilidades ao diferente do que enfrentar o grau de responsabilidade que a própria classe tem perante a exploração.
Sujeitos do consumo
Chegados a este ponto, torna-se necessário indicar, correndo o risco de errar, que a sociedade portuguesa urbana é uma sociedade de alto consumo (existem outros países da Europa com economias melhores, mas prefiro referir-me à portuguesa). O capitalismo parece cada vez mais enraizado na consciência de todas as gerações, obrigando estas pessoas a participar em dinâmicas de consumo e a conseguir, de qualquer forma, meios para participar nelas; ao ponto de aceitar trabalhos de "lixo", ser explorado, ser humilhado, só para poder dizer: "eu sou um sujeito de rendimento capaz de comprar o último telefone da moda". Quando me refiro à sociedade portuguesa, incluo também o migrante.
Será que há um problema de identidade? Que a única forma de me sentir parte de algo é conseguindo algo? Será que o sistema capitalista fez-nos acreditar que vale a pena destruirmos as costas durante um mês inteiro só para que finalmente nos vejam a consumir um prato de comida caro, um copo de vinho no NorteShopping ou num restaurante do centro histórico da cidade? Ainda não sei, mas é importante refletir sobre isso.
O que se pode resgatar
Nem tudo é mau na experiência migratória. O acima descrito deve-se a uma perceção geral do vivido, do interagido com muitas pessoas, mas não significa que não existam eventos singulares que mereçam ser destacados, como, por exemplo:
- A possibilidade de coincidir com pessoas que convergem com os teus esquemas mentais, políticos e culturais.
- A possibilidade de aprender outro idioma.
- De conhecer outras realidades do mundo.
- A possibilidade de forjar novas conexões capazes de trabalhar desde qualquer latitude.
É importante esclarecer que o indicado refere-se à minha experiência, nas minhas condições económicas. Existem pessoas a quem correu melhor, que viveram situações muito agradáveis (o dinheiro sempre é aceite em qualquer parte do mundo), mas também há pessoas que passaram por situações mais complexas, que tiveram de dormir nas estações de metro (Campanhã), porque não conseguiram dinheiro para pagar um quarto; pessoas que tiveram de "caçar" carros que distribuem comida ou viver outras circunstâncias ainda mais difíceis, porque migraram para outras partes do mundo acreditando que tudo seria melhor, que seriam aceites adequadamente, mas depararam-se com uma realidade muito complicada, que coloca em constante confronto toda a classe trabalhadora, seja ela nativa ou estrangeira.